quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sem lírios, chama e esperança


Abri a porta devagar, mas não entrei, deixei que a luz entrasse primeiro. Então se formou um breve caminho luminoso no chão da sala. Minhas mãos, às cegas, apalpavam a parede a procura do interruptor. E quando o encontrei, a luz da lâmpada incandescente ofuscou-me os olhos.
Aos poucos deixei a luminosidade invadir meu campo de visão. Observei os móveis, tudo tão familiar e tão diferente.
– O tempo realmente passou rápido demais!- exclamei em pensamento, pois parece que foi ontem a ultima vez que estive aqui. Isso é um mero engano! Já se passaram quinze anos.
Os móveis estavam todos empoeirados, as paredes, antes branquíssimas, agora amareladas pelas infiltrações, e os vasos estavam sem flores. Esse último item chocou-me ferozmente, o vaso estava sem flores...

Essa era a resposta para a minha pergunta, minha angustiante pergunta. E ela estrangulou-me os sentidos, trazendo a tona meus dolorosos segredos, pois agora sei que Ela, também não estivera mais aqui.
Isso me fez chorar internamente, a esperança de reencontrá-la aqui, se fora. As lágrimas estavam sufocando minha garganta, mas não transbordavam os olhos. Então, larguei um sopro frio e angustiante, e pude sentir o hálito de “carlton red” invadir-me as narinas.
O peito estava contraído, o vaso sem flores, ele nunca estava sem flores. Eram vários tipos de flores e de varias cores, mas as suas preferidas eram os lírios de São José, no qual ela acreditava ser a combinação perfeita para a nossa casa. A nossa combinação perfeita.
Finalmente entrei e deixei a porta se fechar pelas minhas costas, fazendo um ruído indesejável. Sentei no sofá da sala e instantaneamente espirei por causa da poeira e do cheiro de mofo que preencheu meus pulmões.
Levantei, caminhei para a cozinha, procurei por uma fatia de bolo de chocolate imaginaria na geladeira. Depois, direcionei os olhos para o balcão, onde novamente estava um vaso sem flores. Passei o dedo indicador sobre a porcelana, traçando uma circunferência, e o resultado foi exatamente o esperado: a ponta do dedo ficou empoeirada e o formato de um circulo no corpo do vaso.
Respirei fundo, inalando o cheiro fétido da desesperança. Caminhei para o quarto, o nosso quarto, o criado mudo sem lírios, a cama gasta pelo tempo, as janelas trancadas e a penumbra de um homem no espelho.
Forcei os olhos para observá-lo melhor. Os poucos cabelos que restavam, tendiam para um prateado estático e engraçado, os lábios ressecados e os olhos sofridos, sem brilho, sem chama. Um homem velho e amargurado, vestindo uma camisa azul quadriculada e uma calça Jeans desbotada, com a barriga protuberante por causa da cerveja e a barba para fazer.
Observei uma gota cristalina que brilhava no olho esquerdo do homem no espelho. Dei um meio sorriso, um daqueles que se é forçado, e o homem do outro lado repetiu meu gesto. Então, seus olhos viraram ao lado para fitar a cama vazia, as lembranças inevitavelmente vieram à memória, e pude sentir o ar quente que os corpos exalavam nas noites em que faziam amor.
Decidi sair do quarto, para tentar apaziguar o coração, antes forte, agora fraco e debilitado. Retornei para a sala, onde ascendi uma vela e apaguei as luzes. Coloquei-a na mesinha de centro, sentei no chão entre a mesinha e o sofá, aproximei o vaso sem flores e depositei o lírio de São José que havia comprado na floricultura da esquina, na esperança de lhe entregar pessoalmente. O lírio tombou para o lado devido o vaso ser grande demais para uma única flor, e soltei uma risada pela aparente insignificância do episódio.
Enfiei a mão no bolso da calça e puxei uma caixa de remédios, comecei a contar pílula por pílula, depositando-as em cima da mesinha de centro. Ao fim da contagem, ascendi um cigarro e disse num sussurro: - Logo irei te encontrar, meu Amor.
Comecei a engolir em seco, pílula após pílula, uma por uma, até extinguirem-se completamente. Respirei fundo, dei um último trago no cigarro antes de apagá-lo num cinzeiro de prata empoeirado, e enquanto não adormeço, observo a chama queimar o pavio da vela.
O fogo balança graciosamente aos embalos dos fiapos de vento que entram pelas frestas da janela. Um tom de primeiro azul, depois laranja e amarelo. A cera desfazendo-se aos poucos de acordo com o movimento peculiar da chama. Uma hora ela chegará ao fim e apagará. Como um sopro de vida que finda, que morre, que desaparece.
Eu sou assim! Como uma vela acesa no meio da escuridão. É a única luz que luta bravamente para iluminar o local. Mas a chama está chegando ao fim, logo irá apagar. E eu adoro o cheiro de vela queimando...


II Prêmio Proex/UFPA de Literatura. Sem lírios, chama e esperança. In: Pró reitoria de extensão da Universidade Federal do Pará. (Org.). Antologia: poesias, crônicas e contos. 2ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 2011, v. I, p. 219-221.
ISBN: 978-85-63728-06-7

11 comentários:

  1. Maina, que lindo!!!! Foi maravilhoso vc começar com o seu conto, q por sinal eu adorooooo.... Quando leio sem liros, chama e esperança fico sem palavras... Simplesmente, amoooo.... Parabéns pelo blog, ficou a sua cara... Tudo nele me lembra vc... Realmente ficou seu cantinho... E já me preparando pra ler muitos textos seus... Hehehehe....

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  2. Assim vc me emociona mana... Obrigada por sempre está ao meu lado e por me ajudar na criação do blog hehehehe...obrigada por todo... #mysisteriseverything

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  3. Que lindo mana. Parabéns pelo seu lindo espaço Adoro esse conto (também tenho o livro 🙌). Consigo visualizar e até mesmo sentir os cheiros desse conto. Ele de fato me encanta.Parabêns mana linda do meu 😏j😇

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  4. Uma jovem escritora, com um maduro coração. Parabéns pelo conto e pelo blog, Maina!

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  5. Mah... perfeito, envolvente, estou sem palavras... minha mente ficará em espiral com esse conto eternamente, vc conseguiu fazer com que ele faça parte da minha existência

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  6. Perfeito o conto, da pra sentir a angustia deste homem velho e amargurado, parabéns pelo blog e esperamos por mais e mais..

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  7. Nossa Maina, que lindo conto!
    Parabéns :)

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